A Procuradoria da República pode muito, mas não pode tudo[1]
Por meio de três pequenos artigos, tentarei demonstrar algumas ilegalidades cometidas no curso dos acordos de colaboração premiada celebrado entre o Ministério Público Federal e alguns funcionários da holding J&F. O fato para o qual chamo atenção, neste primeiro escrito, é que a forma como algumas provas foram colhidas não obedeceu a critérios estabelecidos pela Lei de Organização Criminosas e, ainda mais grave, violou Direitos Humanos reconhecidos na nossa Constituição da República e em acordos internacionais dos quais o Brasil é signatário. Para demonstrar as mencionadas ilegalidade e ilicitude, é fundamental que se faça a distinção de duas medidas investigativas previstas na Lei 12.850/13, a ação controlada (artigos 8º e 9º), a infiltração de agentes (artigos 10 a 14) e uma terceira forma ilícita de obtenção de provas, o agente provocador.
A ação controlada é uma exceção ao dever do Estado — imposto pelo artigo 301 do CPP — de fazer cessar um crime para, numa oportunidade mais vantajosa, efetuar uma ação policial, comumente a prisão em flagrante. Essa medida investigativa permite o controle e vigilância (observação e acompanhamento, conforme o texto legal) de qualquer ação criminosa, sem nenhuma intervenção. Nela, o investigador não utiliza meio enganoso para obter a prova que pretende ver produzida. Além disso, na cautelar investigativa em questão, inexiste o risco de violação ao princípio do nemo tenetur se detegere, até mesmo porque não há uma pessoa infiltrada que participa da atividade criminosa. O olhar de quem investiga, por meio da ação controlada, é externo à organização criminosa. Em suma, nela o investigador não é um informante que integra a organização criminosa, pelo contrário, é um observador e não possui a capacidade, nem autorização, para cometer delitos no bojo da entidade delitiva.
Para que os agentes do Estado possam entrar no âmago da organização criminosa e, assim, obter informações de dentro dela, foi criada a medida investigativa do agente infiltrado. Tal mecanismo pode ser entendido como “o funcionário de investigação criminal ou um terceiro (subordinado à polícia) que atua ocultado sua qualidade, visando conquistar a confiança dos possíveis criminosos e, consequentemente, à obtenção de provas que possam incriminá-los”[2]. A autora portuguesa Sandra Moura denomina o agente infiltrado como aquele que não determina outrem à prática do crime, mantendo-se à margem da vontade de cometimento e se limitando apenas a observar e, quando necessário, acompanhar a execução do delito[3]. Aqui há o emprego do engodo que excepciona o direito do cidadão de não produzir prova contra si mesmo. O agente infiltrado não permite ao integrante da organização criminosa exercitar o seu direito ao silêncio e, dessa forma, não contribuir para produção de provas que futuramente serão utilizadas para incriminá-lo.
Nas duas medidas previstas na Lei de Organização Criminosas, os investigadores acompanham e observam a trama delitiva. A diferença é que na ação controlada a visão é externa à organização criminosa, ao passo que infiltração de agentes a ótica é interna. Se de um lado a primeira é uma exceção ao dever do Estado de agir, de outro, a segunda é uma exceção ao princípio do nemo tenetur se detegere. É claro que o agente infiltrado é bem mais danoso aos direitos e garantias individuais, pois por meio insidioso o cidadão acaba se comprometendo ao produzir provas contra si. Também sob o ponto de vista moral, o fato de uma pessoa a mando do Estado se imiscuir numa organização criminosa, podendo inclusive praticar delitos, é muito mais reprovável do que o poder público esperar para atuar num momento estrategicamente melhor para colher provas.
Em todas as ações controladas autorizadas pelo ministro Edson Fachin, permitiu-se aos investigadores uma visão interna da pretensa organização criminosa. Em outras palavras, os investigados foram enganados ao crerem que estavam a falar, privadamente, com seus supostos parceiros no crime e acabaram por produzirem provas contra si. Houve, nesse contexto, o manejo de medida investigativa que acarretou na vulneração do preceito do nemo tenetur se detegere, por um meio insidioso. O engodo consistiu justamente na ocultação da identidade de delator. Agrava ainda mais o fato de que as cautelares deferidas pelo Relator foram efetivadas após as entrevistas dos funcionários da J&F com membros do Ministério Público Federal, para o firmamento do acordo de colaboração premiada. Ou seja, os delatores supostamente praticaram crimes monitorados e, em alguns casos, instruídos[4] pelos investigadores. Ao que tudo indica, as cautelares deferidas pelo ministro Edson Fachin se assemelharem mais à infiltração de agente (artigos 10 a 14 da Lei 12.850/13) do que à ação controlada (artigos 8º e 9º).
Há uma terceira situação ainda mais grave, essa sim verdadeiramente afrontosa aos Direitos Humanos. No âmbito da colheita das provas para as delações, houve casos em que o delator agiu como verdadeiro agente provocador, ou seja, aquele que “cria o próprio crime e o próprio criminoso, uma vez que instiga e induz o suspeito a cometer atos ilícitos”[5]. Essa terceira “medida investigativa” é diferenciada das demais através do critério da supressão hipotética da conduta. Em suma, se subtraída a atuação, o crime deixasse de existir, o agente seria o provocador do delito:
A principal diferença entre o agente infiltrado e o agente provocador encontra-se entre o provocar o surgimento de um ato criminoso, que talvez não ocorresse, e acompanhar uma decisão previamente tomada: “enquanto o agente infiltrado trabalha num meio em que os crimes já foram praticados, estão em execução ou na iminência de ocorrerem, o agente provocador incita, instiga outrem à prática do crime[6]
O critério da supressão mental da conduta é antigo, no Direito comparado, para determinar se o agente é ou não provocador do delito. Nesse sentido, é emblemático o caso Teixeira de Castro Vs. Portugal, julgado pelo Tribunal Europeu de Direitos Humanos[7].
No aludido precedente, agentes disfarçados, integrantes da polícia portuguesa, realizaram diversas investidas para que Francisco Teixeira de Castro entregasse-lhes uma relevante quantidade de substância psicotrópica. Após a insistência dos investigadores, Teixeira de Castro pegou seu carro e prometeu apresentar a droga na casa de um terceiro. Uma hora depois, ele levou 20 gramas de heroína no local combinado, ocasião em que os policias sacaram as pistolas e deram voz de prisão a todo os envolvidos.
Ao julgar o caso, o Tribunal entendeu “que se pôde deduzir que os dois policiais não se limitaram ao exame puramente passivo da atividade delituoso do senhor Teixeira de Castro, mas exerceram uma influência de forma a incitar o cometimento do delito”[8]. A partir disso, “a Corte concluiu que a atividade dos dois policias ultrapassou a de meros agentes infiltrados, pois eles provocaram a infração e nada indica que, sem a intervenção deles, os crimes teriam ocorrido. Essa intromissão e a utilização dela num processo penal litigioso privou, ab initio e definitivamente, o requerente de um processo justo”[9].
Independentemente de as ações controladas, no âmbito da delação da JBS, serem heterodoxas, por contaram com a intervenção de delatores, o critério da supressão virtual da conduta do colaborador deve ser aplicado para verificar a (i)licitude das provas produzidas. Esse é o único parâmetro aceitável para assegurar o Direito Humano ao devido processo legal. Por meio da aplicação desse paradigma, veda-se que o agente em acordo com o Estado estimule, instigue, ou provoque o investigado a cometer qualquer espécie de delito. Evita-se a violação à regra do jogo do devido processo legal e que o indivíduo seja arrastado para verdadeiras armadilhas.
O agente provocador é inaceitável por toda a doutrina e não pode ser utilizado como forma de obtenção de prova. Fora do contexto de macrocriminalidade, o Supremo Tribunal Federal já vinha reconhecendo que “não há crime, quando a preparação do flagrante pela polícia torna impossível a sua consumação”. De forma indireta, a Corte já veda ao Estado instigar e induzir o suspeito a praticar um delito, isso para evitar que se armem verdadeira armadilhas contra o cidadão. Esse entendimento deve ser aplicado, mutatis mutandis, às denominadas delações da JBS. Por tudo isso, são ilícitas as gravações em que, com a supressão da intervenção do delator, não haveria nenhum crime.
[1] Ministro Gilmar Mendes, QO na Pet 7.074/DF.
[2] GONÇALVES, Vinícius Abdala. O agente infiltrado frente ao processo penal constitucional – Belo Horizonte: Arraes Editores, 2014. P. 12.
[3] PEREIRA, Sandra. A recolha de prova por agente infiltrado. Prova criminal e direito de defesa. In: BELEZA, Teresa Pizarro e PINTO, Frederico de Lacerda da Costa (Coords.). Lisboa: Almedina, 2010, p. 143.
[4] Em alguns casos, investigadores orientaram os delatores sobre a melhor forma de colher a prova.
[5] SILVA, Germano Marques da. Bufos, Infiltrados, provocadores e arrependidos. In: Direito e Justiça, 1994, v. VIII, tomo 2.
[6] NEISTEIN, Mariângela Lopes. O agente infiltrado como meio de investigação. 2006.Dissertação (Mestrado em Direito) – Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. São Paulo. P. 62.
[7] Acessível, em francês, pelo seguinte link: http://actu.dalloz-etudiant.fr/fileadmin/actualites/pdfs/JANVIER_2013/AFFAIRE_TEIXEIRA_DE_CASTRO_c._PORTUGAL.pdf.
[8] Tradução livre, no original, em francês: “il faut déduire que les deux policiers ne se sont pas limités à examiner d’une manière purement passive l’activité délictueuse de M. Teixeira de Castro mais ont exercé une influence de nature à l’inciter à commettre l’infraction”.
[9] Tradução livre, no original, em francês “la Cour conclut que l’activité des deux policiers a outrepassé celle d’un agent infiltré puisqu’ils ont provoqué l’infraction, et que rien n’indique que, sans leur intervention, celle-ci aurait été perpétrée. Cette intervention et son utilisation dans la procédure pénale litigieuse ont privé ab initio et définitivement le requérant d’un procès equitable”.