Embora o direito comparado tenha demonstrado, recentemente, uma tendência de restrição do âmbito de cognição do recurso de apelação criminal ao exame de matéria estritamente jurídica[1], entre nós é pacífica a possibilidade de discussão, em sede de recurso de apelação da acusação, de matéria fático-probatória. Não há duvida, no Brasil, acerca do cabimento de recurso de apelação do Ministério Público contra sentença de absolvição proferida com base na análise das provas produzidas na instrução criminal (incisos I, II, IV, V, VI, VII do artigo 386 do CPP).
De toda forma, a cognição jurídica acerca dos fatos deve ser orientada pelos princípios da oralidade, da imediatidade e da identidade física do juiz, previstos nos artigos. 399, parágrafo 2, 411, caput, e parágrafo 9º, do Código de Processo Penal. O método de comunicação dos atos processuais funda-se, prioritariamente, no discurso falado: o juiz deve estar em contato físico e direto com as partes e com o material probatório sobre o qual irá decidir. Ademais, para não se perderem na memória do magistrado, os atos instrutórios devem concentrar-se em uma única audiência — ou em poucas — próximas no tempo[2].
Não se poderia estabelecer um sistema cognitivo que não fosse marcado pela oralidade. Isso porque a linguagem falada é dotada de peculiaridades imperceptíveis na linguagem escrita, pois é impossível afastar a palavra dita do seu contexto e nele são trazidas informações relevantes acerca do falante. O juiz ouvinte é mais apto a captar a compreensão cênica do caso e, assim, perceber maior número de dados, quando apreende a realidade na forma da narrativa oral. Tal situação decorre, segundo HASSEMER, do fato de que “no falar mostra-se não só o homem falante, com gestos, mímicas e entonação; a palavra e a situação relatada é tão estreita que a palavra co-determina a situação e que, por outro lado, pode se compreender a palavra a partir da situação”[3].
A vinculação entre a oralidade e a cognição judiciária é tão profunda que HASSEMER afirma que “somente os dados que são levados pela linguagem (oralidade) e somente as próprias percepções do Tribunal (imediação) são um apoio apto para a formulação posterior da sentença”[4].
Também a identidade física do juiz e a concentração dos atos em uma única audiência são garantias da cognição dos fatos pelo magistrado em um processo justo: asseguram que a audiência principal seja a única cena marcada na mente do magistrado sentenciante, sendo o momento probatório um todo na dimensão temporal, no qual todos os participantes relevantes devem estar presentes. Dessa forma tais princípios garantem ao julgador a possibilidade de formar “uma impressão direta dos intervenientes no processo, assim como da disposição de ânimo e qualidades éticas com que estes atuam”[5]. Também, asseguram que “não se percam as percepções hauridas do contato pessoal com as partes e com as provas e alegações trazidas aos autos”[6].
A proximidade física do magistrado com o debate na produção das provas assegura, ainda, o respeito ao sistema acusatório, pois é da discussão pública entre acusação e defesa – e não da mera apreciação posterior e secreta do material coligido nos autos – que deve resultar a conclusão disposta na sentença.
Conclui-se que as garantias da identidade física do juiz, da oralidade e da concentração da audiência principal são inerentes à cognição judiciária democrática e marcada pelo sistema acusatório constitucional. Sem elas o magistrado não faz juízo idôneo do material probatório e, portanto, não assegura o devido processo legal.
Nesse contexto, surge a seguinte pergunta: se os princípios da oralidade, imediatidade e identidade física do juiz são exigências do devido processo legal em sentido material (processo justo), poderiam eles ser afastados no segundo grau de jurisdição? O problema aqui destacado consiste, pois, em determinar se o Tribunal de apelação pode proceder a revisão e correção na valoração e ponderação que o juiz de primeira instância havia efetuado das declarações dos acusados e depoimentos das testemunhas, sem ver-se limitado pelos princípios da imediação e identidade física do juiz. A questão está em saber se esses princípios impõem limites para a revisão da valoração da prova pelo órgão chamado a decidir o recurso de apelação da acusação.
Também no segundo grau os mencionados preceitos do devido processo legal devem ser aplicados toda vez que a pretensão acusatória manifestada em recurso contra a sentença absolutória envolver a análise do material probatório, mormente quanto à prova testemunhal passível de repetição no Tribunal de apelação.
A própria legislação infraconstitucional prevê a possibilidade de, no recurso de apelação, o órgão ad quem “proceder a novo interrogatório do acusado, reinquirir testemunhas ou determinar outras diligências”, consoante o art. 616, do CPP.
Nos casos em que a pretensão recursal do Ministério Público envolver nova análise do material fático-probatório em desfavor do réu, a interpretação constitucionalmente adequada do art. 616 do CPP deve tornar a análise direta da prova pelo Tribunal ad quem obrigatória e jamais facultativa. Se o juiz absolveu o réu, baseado na apreciação da prova produzida sob a sua supervisão, para concluir de forma diversa e desfavorável ao acusado, no mínimo, o Tribunal de apelação deve analisar as circunstâncias fáticas com o mesmo grau de cognição empreendido pelo Juízo a quo, sob pena de violação do devido processo legal.
Portanto, há de se concluir que em regra, no sistema recursal brasileiro, “o segundo grau de jurisdição tem uma função fiscalizadora e revisora do julgado, não se destinando a refazer o processo”[7]. Contudo, seria ilógico permitir que o Tribunal, ao julgar a apelação da acusação, transforme a sentença absolutória de primeiro grau em acórdão condenatório sem analisar a prova com o mesmo grau de cognição e sem o respeito aos princípios que orientam a sua produção no processo penal.
Assim, nos casos de apelação em que a pretensão recursal do Parquet envolver nova análise da matéria probatória, a Corte ad quem deve realizar a apreciação do material probatório sob o mesmo grau de cognição do juízo a quo. A essa conclusão é possível chegar a partir da interpretação do art. 616, do CPP, conforme o art. 5º, inciso LIV, e parágrafo 2º da Constituição da República de 1988.
A ideia aqui defendida encontra amplo conforto no direito comparado. O entendimento do Tribunal Europeu de Direitos Humanos (TEDH), é, há muito, no sentido de que
“Quando a instância de apelação está chamada a conhecer de um assunto sob seus aspectos de direito e a estudar em seu conjunto a questão da culpabilidade ou inocência do acusado, não pode, por motivos de equidade do processo, decidir essas questões sem a apreciação dos testemunhos prestados pessoalmente pelo próprio acusado que sustenta não ter cometido a infração penal, precisando, por esse pressuposto que, com base no pronunciamento absolutório na primeira instância, o acusado deve ser ouvido pelo Tribunal de apelação, especialmente tendo em vista que foi a Corte de apelação a primeira a condenar o acusado no marco de um procedimento dirigido a resolver sobre uma acusação em matéria penal. Precedente repetido na sentença de 25 de junho de 2000” (caso Tierce e outros contra São Marino, §§ 94, 95 e 96).[8]
A jurisprudência do Tribunal Europeu de Direitos Humanos firmou-se no sentido de que, quando o Tribunal de apelação deva conhecer tanto de questões de fato como de direito, e em especial quando deva investigar em seu conjunto a culpabilidade ou a inocência do acusado, a apelação não pode ser resolvida em um processo justo sem exame direto e pessoal do acusado que negue haver cometido a infração considerada punível, de modo que em tais casos o novo exame pelo Tribunal de apelação da declaração de culpabilidade do acusado exige uma nova e total audiência na presença do acusado e dos demais interessados ou testemunhas[9]. Nesse sentido, o TEDH declarou, no ano de 2000[10], que quando a instância de apelação é chamada a conhecer de um assunto em seus aspectos de fato e de direito e decidir sobre a culpabilidade ou inocência do acusado, não pode, por motivos de equidade do processo, decidir essas questões sem a apreciação das declarações prestadas pessoalmente pelo próprio acusado que sustenta que não cometeu a conduta tida como delituosa. Assim, eventual provimento do recurso de apelação da acusação, para impor uma condenação ao réu, deve ser precedida da repetição da prova perante o Tribunal de apelação, especialmente tendo em conta que esse seria o primeiro a impor uma condenação.
O Tribunal Constitucional da Espanha, em dialogo jurisprudencial construtivo com o Tribunal Europeu, consolidou o entendimento de que resulta contrario a um processo com todas as garantias que um órgão judicial, conhecendo a causa em via de recurso, condene a quem havia sido absolvido em primeira instância como conseqüência de uma nova avaliação dos fatos provados que encontre sua origem na reconsideração de provas cuja correta e adequada apreciação exija necessariamente que se pratiquem na presença do órgão judicial que as valora[11].
Em conclusão, identificam-se, quanto ao recurso de apelação criminal do Ministério Público, as seguintes situações: (i) na hipótese de discussão de matéria estritamente jurídica, o Tribunal ad quem pode de plano julgar o recurso ministerial; (ii) quando a tese acusatória não prescindir de nova análise do material fático-probatório, a Corte de apelação pode (a) anular a sentença penal absolutória e ordenar a prolação de novo decisium pelo juízo a quo, ou (b) repetir a instrução criminal oral e julgar mérito da imputação, inclusive para condenar o acusado.
[1] GRINOVER, Ada Pellegrini; GOMES FILHO, Antônio Magalhães; SCARENCE FERNANDES, Antônio. Recursos no processo penal – 4. ed., ampl. e atual – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005. p 112/113.
[2] SCHIETTI, Rogério Machado Cruz, Garantias Processuais nos Recursos Criminas, p. 10, – 2ª ed – São Paulo: Editora Atlas S.A, 2013.
[3] HASSEMER, Winfred. Introdução aos fundamentos do Direito Penal, tradução de Pablo Rodrigo Alflen da Silva – Porto Alegre, Sergio Antônio Fabris. Ed, 2005, p 179.
[4] HASSSEMER, ob. cit, p216.
[5] SCHIETTI, Rogério Machado Cruz. Ob cit, p 10.
[6] SCHIETTI, Rogério Machado Cruz. Ob cit, p 10.
[7] SCHIETTI, Rogério Machado Cruz. Ob cit, p 10.
[8] Cf. Sentença do Tribunal Constitucional da Espanha: Sala Primera. Sentencia 41/2003, de 27 de fevereiro de 2003. Recurso de amparo 2709-2001.
[9] TEDH de 26 de maio de 1988 – caso Ekbatani contra Suécia, § 32-; 29 de outubro de 1991 -caso Helmers contra Suécia, §§ 36, 37 y 39-; 29 de outubro de 1991 -caso Jan-Äke Andersson contra Suécia, § 28-; 29 de outubro de 1991 – caso Fejde contra Suécia, § 32.
[10] Caso Constantinescu contra Rumania, §§ 54 y 55, 58 y 59.
[11] Sentença 272 de 2005.